Crónica de um jovem escritor bracarense, João Nogueira Dias
O Alfarrabista da Arcada
O “Abel dos Livros”, ou “Alfarrabista da Arcada”, era uma personagem muito conhecida na cidade de Braga. Costumava, como a própria alcunha indica, estar na Arcada, em frente ao Café Vianna, com uma banca de livros. Comprava e vendia-os, fazendo daquele negócio o sustento da família. A banca era frequentada por pessoas de várias origens, desde o comum leitor, até ao intelectual que ali encontrava autênticas pérolas, a bom preço.
O alfarrabista não era uma figura pacífica. Em pleno Estado Novo, era considerado um homem do “reviralho”, ou seja, não aceitava a situação política do país e, sempre que podia, insurgia-se contra a mesma.
O seu percurso fora rico em peripécias. O seu pai trabalhara como electricista no Theatro Circo, o que permitiu a Abel trabalhar, ainda na infância, na mítica sala de espectáculos, a vender rebuçados, experiência que lhe valeu o contacto com muitas peças de teatro e filmes aos quais a maior parte da população não tinha acesso. As viagens para Lisboa, nas quais ostentava, com orgulho, a condição de bracarense inveterado, renderam também muitos episódios para poder contar aos seus netos.
Mas, apesar de muita coisa ter vivido, de modo intenso, houve um episódio com o qual ele não contava. Foi em finais de 1973, princípios de 1974, que outro dos activistas do “reviralho”, o António, frequentador da banca de livros do Abel, responsável pela entrega de muitas publicações clandestinas, de carácter subversivo, ganhou outro forte motivo para visitar o alfarrabista, que não a literatura. Conhecera uma mulher, Isabel, com quem se começara a encontrar. Só que, nessa altura, António começava a ser procurado pela PIDE. Passaram então a trocar cartas. A correspondência, fosse de cariz romântico ou simples marcação de encontros, era deixada com o Abel, que a guardava junto aos livros. Quando um deles chegava junto da banca, perguntava, com um sorriso “há novidades?”, pergunta essa à qual o alfarrabista respondia com um livro na mão, escondendo a carta por trás do mesmo.
Porém, a polícia política não dormia em serviço. E chegou aos seus ouvidos que António trocava correspondência com a sua namorada, através da banca do alfarrabista. Ora, o próprio alfarrabista recebia a visita da PIDE, todos os dias 30 do mês de Abril. A polícia política procurava propaganda da oposição relativa ao 1º de Maio, que pudesse estar escondida no meio dos livros.
António não teve outra solução senão esconder-se, durante alguns dias, em casa de um amigo. Por mais que quisesse, não podia deixar nada na banca d o Abel, vivendo com a angústia de querer dar um sinal a Isabel e não poder fazê-lo. Sabia que a PIDE iria montar o cerco, cruzando todos os caminhos que ele pudesse tomar. Se estava em apuros, o melhor seria não colocar mais ninguém na mesma situação. A polícia tinha um forte motivo para acreditar que alguma carta iria ser deixada na banca do Abel, para que Isabel recebesse notícias. E começou a rondar o local.
O Abel, já com muitos anos naquelas andanças, percebeu que havia ali algo de estranho. E esperava que António não fosse comprar livros, ou deixar uma carta para Isabel, pois seria meio caminho andado para a sua captura.
Só que, certo dia, de manhã o coração falou mais alto. António encheu-se de coragem, juntou-lhe o desespero que sentia, havia já alguns dias, e decidiu procurar Isabel. Não iria passar na banca do Abel, mas iria directamente a casa dela. O seu amigo, Álvaro, tentou demovê-lo.
- Não faças isso, pá. Eles também estarão perto da casa da Isabel. Vais ser apanhado.
- Eu tenho que ir. Prefiro arriscar.
A decisão de António era exactamente o contrário do que o bom senso sugeria e iria mesmo colocá-lo nas mãos da polícia, já que a casa de Isabel era mesmo dos locais que estavam a ser vigiados. Só que a noite anterior não fora uma noite qualquer. Às onze da noite, tocou na rádio o tema “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, enquanto que à uma da manhã, tocou o “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso. Já de manhã, quando António se preparava para sair, Álvaro foi a correr, chamá-lo.
- Está a dar um comunicado na rádio, das Forças Armadas.
Os dois olharam-se, como que percebendo, em simultâneo, o significado daquele momento. Estava em marcha uma Revolução. Só que importava perceber qual a orientação do golpe. Não sabiam para que lado iria cair a situação.
Já durante a tarde, as circunstâncias estavam clarificadas. Era seguro sair de casa. O Abel, sentindo uma grande alegria, pela queda do regime, saiu à rua para festejar. Aquele homem nunca se conformara com a situação do país, honrando assim as suas raízes, uma vez que era filho de um membro do Partido Republicano, durante a Monarquia. E junto ao local onda fazia a habitual venda dos livros, pôde testemunhar o reencontro de António e Isabel, marcado por um abraço forte e sentido. Abel olhou-os e sorriu, deixando-se estar, ao longe, para não os incomodar. Não pôde deixar de comentar o momento, com o seu amigo, o Valentim Salsa, que o acompanhava naquele momento.
- Este dia é histórico. A partir de hoje, é permitido amar em Portugal
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário